Como Sobre os Ossos dos Mortos conversou comigo

 

Esse é um livro sobre hipocrisia, dormência e se quiser, justiça. 

Nem sempre a justiça é algo lindo, dourado e libertador. Ás vezes ela vêm na forma de pequenas mãos enrugadas, fortalecidas por competições de arremesso de martelo em algum lugar frio perto da República Tcheca, que embalam um sacola de plástica cheia de gelo. 

A história é narrada por uma muito inteligente e improvável senhora, Janina Dusheiko, ou apenas Sra. Dusheiko, que tem uma profunda sensibilidade e percepção do mundo. Ou seja, enxerga uma verdade: suas atenções se voltam muito para a crueldade aos animais, na caça, nas fábricas de couro, nos abatedouros, no consumo de seus corpos para a alimentação.  

Ela vive em um vilarejo de poucas casas perto de uma cidadezinha na Polônia, que durante o longo inverno é abafado por uma densa camada de neve e pelos fortes ventos que correm pelo planalto e se juntam às árvores da floresta. Quando os outros moradores vão embora após o verão, ela cuida de suas casas e faz reparos, no meio do caminho desarmando armadilhas e ajudando pequenos animais presos. É um região de caça, principalmente caça ilegal – mesmo que ela afirme que não sabe a diferença que há entre uma e a outra, pois assassinato é assassinato. Um de seus dois vizinhos que permanecem no vilarejo no inverno, é um dos responsáveis pela matança de corças e outros animais, ela o chama de Pé Grande e a história começa quando ele morre e Esquisito, o outro vizinho, bate à porta para avisá-la. 

Morto por asfixia devido à um osso de corça, Dusheiko acredita que é uma vingança causada pelo animal no além-mundo, suposição enfatizada pela presença de um grupo de suas parceiras do lado de fora da casa asquerosa de Pé Grande. As corças olharam para Dusheiko com seus olhos pequenos e brilhantes, como se esperassem. Foi o sinal que ela acreditava que esperava para intensificar sua ação contra os caçadores. Ela manda cartas à polícia, atrapalha as caçadas e sente uma raiva imensa por aqueles homens cruéis que despedaçam corpos e dão risada sobre cadáveres. Sua raiva é palpável e nós a compreendemos muito bem. Tudo que ela sente e pensa sobre eles é justificável, pois as atrocidades que eles cometem são imperdoáveis. A visão de Dusheiko sobre a questão dos animais é bem lúcida e racional, em muitos momentos ela questiona com indignação se as outras pessoas estão dormindo, se perderam o juízo e a compaixão. E de fato, é como e ela fosse a única acordada durante a história toda. A única que quer fazer algo à respeito, que quer parar com a violência, que quer dar aos animais o respeito e paz que lhes é de direito. 

Acompanhamos em torno de um ano de sua vida, verão, outono, inverno e primavera, conseguimos entende-la através de seu chá preto, seus vizinhos e amigos, as traduções de William Blake que faz com um deles, seu trabalho como professora, indícios de seu passado, seus fantasmas e moléstias, seu genuíno interesse e compreensão da astrologia e do movimento dos planetas. Janina Dusheiko é uma mulher incrível e peculiar e fantástica. Seus passos cotidianos traçam um caminho significativo, atento aos detalhes e aos pequenos cuidados – sua coerência e senso de justiça assusta o vilarejo, a cidade, as pessoas. Tanto que em muitos momentos é tratada como a velha maluca, ela sabe que muitos homens não a levam a sério, nem as autoridades. O que eles poderiam pensar de uma senhora idosa que vive sozinha no meio da neve e se posiciona diretamente contra as tradições locais? Uma bruxa, velha maluca – é algo enraizado no imaginário coletivo do mundo. Ninguém a leva a sério, mas o importante é que ela leva a si mesma a sério e talvez por isso, age com confiança sempre. Talvez isso tenha sido o que a levou a ir adiante, agir mais. 

Esse livro conversou comigo de forma muito pessoal, pois coloca em palavras coisas que senti a vida inteira: raiva e impotência diante da crueldade contra os animais, a percepção da injustiça e os olhares estranhos por falar coisas óbvias e coerentes. Como vegana – posição política que recusa qualquer tipo de exploração animal -, eu senti um certo alívio em ver essas questões sendo tratadas em uma história tão bem escrita, por um autora incrível como a Olga e que ganhou um Prêmio Nobel. Não vou ser ingênua e pensar que ele vai mudar o mundo, porque não vai. Muitos vão ler, achar triste e concorda com Dusheiko, mas então vão fechar o livro e esquecer. Entendo que pode ser um mecanismo de defesa, nem todos estão preparados para encarar de frente as perversidades da nossa sociedade e agir contra elas. Afinal, o perverso é o status quo, e é dificílimo nadar contra a corrente. Contudo, não é impossível. Cada braçada contra a corrente é o que um dia vai libertar todos nós da violência e das crueldades. Precisamos manter nossos olhos abertos, mesmo que dormir seja mais fácil. 

Uma parte muito interessante é quando Dusheiko acusa justamente o marido de uma mulher da cidade de ter matado cachorros, e a mulher diz que ele jamais faria uma coisa dessas. A senhora a questiona então, qual a diferença entre corças e cachorros. Entre porcos e cachorros. Entre raposas que são criadas nas fábricas de couro e cachorros. Isso também é um debate que entra muito no veganismo: por que alguns animais recebem nosso cuidado e outros não?

Não estou aqui para aprovar ou desaprovar as atitudes que Dusheiko tem em alguns momentos da história e seu sentimento de justiça, estou aqui para dar destaque à lucidez da história, à triste ironia de ver a reprodução da dormência humana das páginas na vida real e vice versa, e à crueza dos detalhes que tentamos evitar ver. O sangue coagulado, os gritos de sofrimento, as patas arrancadas, cabeças decepadas e corpos violentados, estraçalhados, despedaçados, são coisas mortas que se tornam vivas durante a história. Pelo menos durante o momento de leitura, ninguém dorme. É uma mensagem poderosa, o livro inteiro o é. 

Eu poderia comentar capítulo por capítulo, escrever um texto sobre cada uma das 252 páginas, talvez o faça. Quem sabe? A única coisa que tenho certeza no momento é que a Sra. Dusheiko é a inspiração de uma mulher que trava batalhas internas e externas todos os dias e mesmo assim, não deixa de expor aquilo que enxerga, aquilo que a incomoda. Mesmo que isso cause maior incômodo nos outros. Para ler essa história é preciso seguir essa inspiração: ler atentamente, um passo de cada vez e cuidando a respiração. Uma leitura mais do que recomendadíssima. 


(Texto publicado originalmente no meu perfil do medium)

Comentários

Postagens mais visitadas