Uma Jovem em Chamas e o Enquadramento dos Cinco Elementos

 


            Como uma típica escorpiana, a diretora Céline Sciamma cria cenas profundas, significativas e sensuais como ninguém, no filme lançado em 2019. A profundidade da história, das personagens e dos simbolismos fazem jus ao signo com essa mesma fama. A narrativa aparentemente simples mostra detalhes que muitas vezes não estão destacados na tela, é preciso um olhar atento para captar as minúcias e tudo que se passa de uma cena para outra. Apesar de trazer temas densos, foi um filme que não me pesou, me senti leve ao assisti-lo. Agora penso que talvez seja porque as personagens passam confiança entre elas, além da situação dramática que traz o destino, nada pode lhes fazer mal. Não enquanto estão naquele lugar e juntas.

            Essa é uma trama em que mulheres têm presença e posição significativa, mais importante ainda do que a narrativa ser sobre elas, é que a narrativa é delas. Tecida e costurada ao redor de seus atos, expressões e emoções. Os tons das roupas são puros e fortes, mas a simplicidade delas e dos ambientes, mostra que as personagens são suficientes. Nada mais é preciso quando estão em cena. Cada uma é um mundo por si. A trama envolve principalmente o romance entre Marianne e Heloïse, mas não deixa de lado Sophie. A pintora, a senhora e a servente. Nenhum desses rótulos faz peso quando estão juntas, conversando, rindo e caminhando. Deixadas sozinhas em uma mansão à beira do mar, para que Marianne pinte um retrato de Heloïse (inicialmente em segredo) para o futuro marido desta, Sophie faz companhia e os trabalhos da casa. Cada uma é um mundo e uma história, que se entrelaçavam brevemente e mostram a possibilidade e força que mulheres juntas podem ter. A simplicidade material evoca o entendimento de que o não visível é complexo e rico, há humanidade e significado em seus corpos. Diferentemente dos filmes a que estamos acostumadas, em que mulheres estão na narrativa para cumprir tabela ou servir de objeto às aventuras masculinas.



Cada uma possui um vestido que mais usam de uma cor específica, que se destaca nas cenas de mar e areia, prado e sala. O de Heloïse é azul escuro, representa o mar, ela é águas profundas. Um mar aparentemente calmo e sem ondas que não inspira temor, mas que rebela-se e revolta-se em ondas altas e agitadas, uma verdadeira tempestade quando necessário – a raiva que sente por ser obrigada a se casar com um homem que não conhece, nem deseja; por não entender a morte da irmã; por ter de ir embora e separar-se de Marianne; 

Marianne é o fogo, a história começa e termina com ela, ela se mantém acesa desde o início, atenta e elevada. Como chamas crepitando na lareira - uma imagem recorrente durante o filme todo - querendo ou não, é sua presença que ilumina e aquece a casa – desde a mãe de Heloïse que lhe diz que fora a causa de rir como não fazia há muito tempo, à Sophie que ganha uma amiga e confidente com quem pode ser sincera. Até Heloïse, a quem suas chamas mostram novos caminhos, o calor do amor e a intensidade do erotismo.

 Conforme as duas se aproximam e seus sentimentos crescem uma pela outra, vemos as lareiras acesas ficarem mais presentes, até o ápice em uma noite em que saem pelo campo para encontrar um grupo de mulheres e há uma grande fogueira brilhante para aquecer à todas. Heloïse chega em frente ao fogo, desliza a capa pelos ombros e olha profundamente nas chamas, é tudo que Marianne vê: a outra iluminada pelo seu elemento. Quando Heloïse se vira para olhá-la, elas se encaram e a barra de seu vestido pega fogo. É como se finalmente a atração e os sentimentos de ambas se consolidassem com a permissão de Heloïse. Com o vestido azul em chamas, seu mar em chamas, ela aceita a presença de Marianne em sua vida como um fogo que queima e deixará marcas, é uma jovem em chamas. Não pode evitar não querer que se apague, porém, é forçada: desmaia e correm para ajudá-la a apagar o fogo. No momento seguinte, Marianne toca o seu braço com firmeza e vamos para um cena em um tempo posterior, provavelmente no outro dia, em que Heloïse à guia para uma caverna à beira-mar e elas se beijam pela primeira vez, materializando a aceitação de seus sentimentos. O fogo forçado a se apagar é sobre a forma como o casamento e sua mãe arrastanm-na para longe e para um homem que não quer. É a impossibilidade de Marianne agir em favor de si e dela, então o fogo se apaga. Mas Marianne será sempre chama acesa para Heloïse. E Heloïse sempre estará em chamas na memória de Marianne.

Já Sophie, o vestido é de um tom bege, e representa a terra. Ela é firme e inteira, racional e perspicaz – foi quem estava junto e notou que a irmã de Heloïse não gritou ao cair do penhasco e morrer. Ela sabe, mas não quer dizer: suicídio. No meio da narrativa, descobre que está grávida e procura uma parteira para abortar. Em todo o tempo, é firme como a terra, tem os pés no chão sem mover-se, ela sabe o que tem de fazer e aceita porque é o melhor para si, porque sabe como a vida funciona e que deve se manter fazendo o necessário para isso. Ela não lida com a situação sozinha, tem primeiro a companhia e apoio de Marianne, que tudo faz para ajudá-la, e depois Heloïse, a quem se aproxima e se torna apoio também.



 É nítido o laço que se forma entre as três, quando tão naturalmente se apoiam e estão lado a lado,  às vezes conversando e rindo, caminhando na praia e jantando juntas. Em outras, partilhando sofrimento em olhos silenciosos. A amizade das três se firma verdadeiramente quando após o aborto de Sophie, Heloïse mobiliza-as para uma pintura: as duas posaram retratando a cena e Marianne às eternizará com tinta. É como um ritual para aliviar Sophie e libertá-la de qualquer tensão sentida. Se há algo que esse filme mostra é a amizade sincera, o companheirismo e a solidariedade entre mulheres. De forma simples e muito bela, é possível ver e sentir o quanto somente nós podemos está lá por nós mesmas e ser capazes de entender tudo o que a outra passa e nos apoiar verdadeiramente.

Sophie é o que as mantém sem sucumbir, seu solo tem firmeza – é quem as puxa para a realidade, “Madame retornará amanhã”, disse ela. Marianne e Heloïse repentinamente tinham pouco tempo, e se dispersa qualquer desentendimento acerca do casamento e das vontades de ambas. Elas devem viver o que tempo que têm, e não sonhar com fantasias – não podem ficar juntas em seu mundo.

As três formam água, fogo e terra. Talvez a mãe de Heloïse seja o ar – ela vem e vai, ora calma como um vento morno, ora risonha como uma brisa leve ou furiosa e contida como um vento que sopra forte em ondas pausadas. Ela traz Heloïse e então a leva, como se fosse uma folha ao sopro do vento. As águas de Heloïse se agitam sob o vento forte da mãe que não lhe deixa escolha, é daí que vem a raiva, pois o casamento e a obrigação foram-lhe arranjados por ela. O vento tem que soprar, não importa o que atinja. A condessa sabe disso.

Na noite anterior à chegada da mãe de Heloïse, as duas usam branco, deitadas frente a frente na cama. Como se despidas de qualquer coisa que não a si mesmas, enxergando uma à outra em sua totalidade, sem outras cores que não às da própria alma. “Eu lembro da primeira vez que eu quis te beijar”, disse Heloïse. “Quando foi?”, pergunta Marianne, “Você não notou?”, indaga Heloïse. Há uma pausa, Marianne responde: “Na festa, à fogueira”. Foi antes disso, mas foi o momento que mais a marcou. O que partilharam jamais será esquecido. Quando Marianne tem de partir com a chegada da Condessa, Sophie a abraça fortemente. O que partilharam jamais será esquecido.



Anos depois, Marianne está em um estúdio dando aulas de desenho, e usa um vestido azul escuro, do mesmo tom do de Heloïse. Como se para ter em si uma parte da jovem tal qual teve o fogo na noite da fogueira, ofuscando o tom da sua própria vestimenta. Marianne vê em uma exposição um novo retrato de Heloïse. Esta usa uma vestido branco, semelhante ao de sua última noite juntas e segura um livro que tem significado para ambas. Em outro momento, Marianne vai à ópera e vê Heloïse uma última vez: ouvindo com forte emoção a lembrança de Marianne que a música traz. Parece ser quando percebe, que as chamas não se apagaram.

Quando estava fazendo anotações sobre o filme para elaborar esse texto, pensei: “não pode ser uma simples crítica de elementos técnicos e narrativos...”. Não faria jus ao que ele representa, ao que ele expressa. Assim, fiz uma interpretação a partir dos quatro elementos (fogo, água, terra e ar), justamente a partir do conceito da jovem em chamas e do meu olhar sobre o que o filme me transmite: a força da Natureza, ora dia ensolarado, ora tempestade que ruge. São múltiplas faces, e eu vi as mulheres da narrativa nessas faces. O próprio cenário auxiliou nisso, com a praia e o mar, o campo e o ar livre à noite, as lareiras nos aposentos. Me chamou e eu atendi. Que filme, concluí, após as 2h terem se passado.

Se as mulheres são os quatro elementos, o quinto, a energia, é a potência feminina que emerge de cada palavra e gesto nas atuações e linhas do decorrer da narrativa de La portrait de une jeune fille em feu.




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